Alice olhava pela janela, ocupando dois terços do assento do trem, a mochila ao seu lado ocupando o terço restante. O vagão estava relativamente vazio, de forma que os passageiros mais tagarelas estavam a uma distância suficiente e não caracterizavam um incômodo a ela. Alice não estava com sono, mas olhava para a janela como quem espera que a paisagem inspire sonhos bons. "O céu dos humanos é tão azul", pensava ela. Havia algo de nostálgico, naquele céu azul. Nostalgia de algo que ela não sabia definir o que era, algo que acontecera há muito tempo, quando ela ainda não conseguia formar memórias sobre as coisas. Os céus de Alice nunca foram azuis. Suas lembranças mais fortes, mesmo das ocasiões felizes de sua vida, eram caracterizadas por um céu escuro, com muitas nuvens, ou então tingido de vermelho, com labaredas altas lambendo o ar ao redor dela. Ela imaginou que, se Lena não forçasse Ella a usar vendas sobre os olhos a todo momento, ela teria a mesma sensação nostálgica ao ver o céu azul. As duas eram muito parecidas, nesse aspecto. Potencialmente fortes, restringidas por seus próprios corpos. Talvez Ella nem tivesse uma noção exata de como seus ossos eram frágeis e como uma liberação maior de seu poder faria sua existência entrar em colapso sobre si mesma como uma estrela prestes a se tornar uma supernova, pois ela nunca teve a oportunidade de experimentar o quão vasto era esse tal poder. Assim como Alice não teve tempo de controlar toda a força latente dentro de si, que por ventura ainda corria em suas veias, esperando uma oportunidade de liberação, esperando que a muralha desmoronasse. Seus potenciais foram roubados, um por uma irmã superprotetora e um corpo tristemente incapaz, outro por valores distorcidos de uma hierarquia antiga que fizeram com que um inimigo surgisse, incapaz de terminar o que decidira começar. Haviam sido aleijadas. Por vezes Alice se encontrava imaginando se não seria melhor não existir, no lugar de existir pela metade. Tentando afastar esse pensamento, ela fechou os olhos, mergulhando em pensamentos. As imagens do céu nublado e os tons de vermelho inundando a atmosfera ainda persistiram por alguns momentos, substituídas por uma lembrança de uma noite estrelada, e um rosto amigável, porém inidentificável. O rosto não sorria, e Alice tentou identificá-lo analisando a cor de seus olhos, que ficava mais nítida com a iluminação da lua, imaginando que uma cor familiar de cereja poderia aparecer...

Ouviu uma movimentação no terço do assento ocupado por sua mochila e, num movimento hábil e leve, descruzou as pernas e movimentou a mão esquerda, segurando a lona da mochila num aperto forte, girando o corpo para a esquerda enquanto estendia a perna direita e segurava o cabo da adaga presa ao seu tornozelo. Abrindo o encaixe num clique, girou a adaga na mão direita, segurando-a perpendicularmente ao pé estendido contra a jugular do rapaz que segurava uma alça da mochila com uma mão e mantinha a outra levantada em sinal de rendição.
— Eu estava prestes a desvendar um mistério de uma lembrança que eu não sabia que eu tinha — começou Alice, abrindo um olho. — Então, para o seu bem, espero que você tenha um motivo muito bom para querer roubar minha mochila, como, por exemplo, estar faminto e imaginar que uma moça bem vestida como eu tenha embalado ao menos um pãozinho de mel para a longa viagem. Se não for esse o caso, sinto em informar que precisarei deslizar esta bela arma para dentro do seu queixo musculoso como punição por, além de perturbar meus pensamentos, atentar contra a minha propriedade pessoal, a não ser que você seja gentil o suficiente para afastar-se agora mesmo e ir dar uma volta pelo vagão da frente.
Piscando com força, como quem acaba de acordar, e logo após exibindo as íris levemente avermelhadas, Alice encarou o rapaz, esperando uma resposta bem articulada, por mais que ela soubesse que a resposta não viria. O rapaz engoliu em seco, afrouxando a mão que segurava a alça da mochila e levantando-a na mesma altura da outra.
— Um vampiro, num trem humano? — indagou o rapaz.
— Não sou vampira.
— Então... Você está chapada? — tentou, com um sorriso torto.
— Também não sou humana.
Alice sorriu, e o rapaz teve um vislumbre do que seria o sorriso de um certo gato listrado de uma certa história fantástica, se fosse verdade. Em partes, a história de fato era verdade, mas o rapaz provavelmente não parecia querer gastar seu tempo com as charadas de Alice e decidiu sair de fininho, andando de costas em direção ao próximo vagão. "Eles têm um céu azul tão lindo para admirar e ainda assim...", pensou ela, rindo, antes de virar-se novamente para a janela, passando um braço pela alça da mochila.
Então, a parada é a seguinte. Deixa eu te contar uma história?
Lá em setembro de 2008, numa terra tão, tão distante, comecei a escrever uma história fantástica. Das narrativas que já inventei, essa é a mais elaborada e detalhada, são muitos personagens e cenários e trilhas sonoras e também coisas que ainda não sei como encaixar direito. Acontece que eu fico tendo muitas dúvidas sobre ela, o que posso fazer para que mais uma histórias com vampiros e lobisomens chame a atenção, se ainda é interessante, se alguém ainda vai gostar... E ao selecionar mais alguns textos para publicar aqui acabei me deixando levar em escolher os que mais gosto, só que se eu jogar eles assim tão repentinamente pra alguém que nunca leu, seria quase um desserviço. Então resolvi dar um passo atrás, revisitar alguns trechos e compartilhá-los mais ou menos em ordem. Convenhamos que tem coisas que soam incríveis quando se tem 14 anos e mais de uma década depois já não é bem assim, né. Não que seja ruim, só diferente. Deu pra perceber que quero tomar todo o cuidado do mundo com essa história? :D
Mas é isto, sinto que vai me fazer bem demais revisitar isso tudo.
Espero que você goste, talvez tanto quanto eu.
P.S.: Parte de mim acha que "Alice" é um nome clichê do clichê, mas não tenho o que fazer, é o nome da personagem, se eu chamar ela de outro jeito ela não vem, sabe?